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Longe dos olhos da maioria, Vitória tem noite viva e cheia de histórias

Nádia Prado e Rafael Carelli

Com relatos de cidadãos que vivem a rotina da madrugada da capital, conheça um pouco mais da trajetória daqueles que estão nas ruas enquanto outros dormem

São 23h20. O barulho do motor do avião de cargas do Aeroporto Internacional de Vitória pode ser ouvido pontualmente, todos os dias neste horário. Não há dúvidas da localização. Estamos no Jardim Camburi, o maior e mais populoso bairro do Espírito Santo.

A noite é quente e o trânsito nem de perto lembra o das ruas movimentadas do bairro, que abriga mais de 60 mil moradores em Vitória. Com a batida em retirada da maioria dos cidadãos da cidade, a noite, há de se dizer, tem um ar “sorrateiro”.

Sair para apreciar as histórias e absorver as sensações que o breu tem a oferecer não é das tarefas mais simples. Dos poucos que se vê vagando pelas ruas, é difícil identificar os sujeitos que estão dispostos a compartilhar a sua jornada. Acontece todo um ritual antes do contato inicial.

O passo muda de direção e passa a ir de encontro ao que está longe. Ocorre um primeiro contato visual, que vai deixar claro se a aproximação é amistosa ou não. A postura corporal do que está esperando para ser abordado se modifica completamente. Enrijecido, desconfiado e atento para se safar caso algo dê errado, o possível personagem de uma grande história da noite se ajeita.

Toda essa trama aconteceu com José Marcos, 25. Entregador do Ifood, se escorava na moto e esperava o celular acender com o comando para a próxima corrida. Tímido e de jeito simples, José Marcos é um jovem, mas já tem família constituída. Casado desde os 18 anos, tem uma filha de 5, e é por ela que faz as corridas noturnas. 

Morador de Jardim Carapina, faz corridas no Jardim Camburi e considera a posição em que se encontra tranquila, por estar perto de casa e da família. Caso algo aconteça, Jos

é Marcos já sabe que poderá ter ajuda próxima. De noite, como explica, é mais tranquilo para trabalhar.

“De dia, o pessoal é mais acelerado, mais ignorante. Como eu entrego marmita na hora do almoço, as pessoas estão com mais pressa”, explica.

Ele ainda aponta outro problema, típico para a profissão dele: o trânsito. Relatos e mais relatos de motoristas que jogam o carro em cima das motos de entregadores, a falta do uso da seta no trânsito de Vitória e os motoboys com pressa são alguns dos percalços que José Marcos expressa.

Com a história de José Marcos em mãos e com a certeza de que a noite, assim como o dia, é fonte de sustento para muitas pessoas, continuamos em busca de mais histórias e relatos dos seres noturnos. De quem, na ausência do sol, procura o seu lugar nele.

Bairro adentro, vencemos a escuridão das ruas e avançamos pelas inúmeras rotatórias e quarteirões de prédios, muito semelhantes uns aos outros. Um pouco mais inseridos no bairro, surge, quando menos se espera, uma praça. O aspecto, de “pracinha” do interior, daquelas com bancos de cimento, igreja e lanchonetes, dá um aconchego instantâneo.

Numa das margens da praça, mesas na rua e clientes conversando. É uma sorveteria. A gerente do local, Maria José, 56, recebe a todos de braços abertos. No momento em que chegamos, ela negociava com um cliente, que era funcionário de uma concessionária, a compra de uma moto.

O local funciona há 16 anos. Sempre com horário de funcionamento que avança a madrugada, Maria José toca o negócio em alguns dias da semana. Ela, como gosta de ressaltar, já foi dona do estabelecimento, mas hoje em dia prefere a função de gerente.

O trabalho a noite representa, para ela, tranquilidade. “É calmo, é tranquilo. Você conversa com muita gente. Você entra na conversa do cliente, ele entra na sua conversa. É muito bom, trabalhar é bom”. 

Quanto às vendas, Maria José afirma que as vendas de noite são “mais ou menos”. Ela, gerente, e o dono do local mantém o horário de funcionamento para se mostrarem abertos. Segundo ela, em Vitória, os lugares fecham muito cedo.

A conversa com Maria José seguiu o roteiro que ela mesma mencionou das tratativas com clientes à noite. Uma conversa se entranha na outra e as histórias vão aparecendo. Há 9 anos, Maria luta contra um câncer de mama com metástase óssea. Sem plano de saúde, amigos custeiam os tratamentos de quimioterapia.

Maria José mistura as falas de amor, compaixão e carinho com opiniões políticas inflamadas. A feição chega a mudar quando a gerente dá seus pitacos sobre direitos trabalhistas, Brasil e Covid-19, como no vídeo abaixo.

“Se vier um comunismo, eu não faço mais quimioterapia, eu prefiro ir embora”

A gerente ainda conta que, apesar da não comprovação científica de eficácia de medicamentos no combate à Covid-19, ela toma as drogas por conta própria, e não conta para a médica.

Sorveteria fechada, turno encerrado, Maria José pega a bicicleta e vai embora para casa pelo calçadão. “10 minutinhos eu chego. Às vezes eu paro, converso com alguém”. Ela garante que não fica cansada, apesar do tratamento agressivo. “Mesmo que me sentisse assim, teria que levantar pra trabalhar”. Trata o ofício como dever absoluto e defende a posição.

Já é tarde e cada vez menos se vê pessoas nas ruas. A frase típica de que “a cidade dorme” se encaixa na madrugada de Jardim Camburi. A escuridão se abaixa cada vez mais e o breu toma conta das ruas. A iluminação é boa, mas a noite é implacável.

E agora, em busca de mais alguém que compartilha sua vida com a noite, nos resta a opção daqueles que são os maiores representantes dos seres noturnos das cidades grandes no nosso tempo, ao lado dos seguranças: os porteiros.

A certeza é de que sempre estarão ali. Cansados, às vezes mal-humorados ou até dormindo. Mas a presença dos porteiros para proteger o patrimônio alheio, uma tarefa muitas vezes ingrata, ainda mais à noite, é a certeza nas metrópoles do Brasil.

O “Seu Aguinaldo” é um deles. Com 56 anos, Aguinaldo conta, com orgulho, que já trabalha no prédio há 12 anos. A noite, para ele, é tranquila, calma, mas o sono é o inimigo que vem com mais força nos turnos de madrugada.

Morador do bairro de Fátima, trabalha perto de casa e, para ir embora, leva menos de 20 minutos. A rotina do dia, que poderia ser abalada pelo turno invertido de trabalho, não parece ser muito atrapalhada pelas vivência na guarita da portaria.

“Eu chego em casa e durmo até umas 11h. Depois do almoço, descanso mais um pouco. De noite, também. Eu durmo bem, descanso bem”, conta.

Natural de Colatina, Aguinaldo conta que as possíveis ameaças externas são o que o mantém acordado. Apenas a existência da possibilidade da chegada de alguém é o suficiente para que o funcionário se mantenha alerta, para proteger a moradia das pessoas. Ele diz que “não gosta de dar motivo”, caso estivesse dormindo.

E a noite é finalizada com as palavras certeiras de Seu Aguinaldo. Durante a conversa, olho sempre na guarita e no portão do prédio. Várias especificidades foram cobertas. Aquele que percorre os bairros atrás do sustento, aquela que tira do negócio próprio o fruto para a família e aquele que, na porta da casa dos outros, luta para manter a segurança. A noite traz nuances que a escuridão às vezes não deixa mostrar. 

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