Por volta da meia-noite, uma boa parte das janelas das casas já não brilham mais. As luzes do comércio, aos poucos, também já não existem. Mas se engana quem pensa que a cidade de Vitória, no Espírito Santo, dorme. A capital capixaba vem ganhando cada vez mais adeptos da vida na madrugada, incluindo pessoas que “enganam” seus próprios relógios biológico para trabalhar e até aproveitar a praia.
É o caso dos feirantes do bairro Jardim da Penha. Quem costuma chegar cedo ao local se depara com as barracas armadas, além de trabalhadores dispostos, cantarolando, inventando rimas e convidando a freguesia para as suas bancas. Não imaginam, no entanto, o que se passou durante a madrugada, antes que tudo ficasse pronto.
Por volta das 3h, caminhões, carros pequenos, ajudantes e feirantes começam a movimentar o local. Nesse horário, a feira mais conhecida do bairro vai se preparando para receber seus frequentadores logo ao nascer do sol. Faça chuva ou faça sol, a Rua Comissário Queiroz, começa a fazer jus ao apelido que tem: rua da feira.
E foi ali na feira que, há pouco mais de dezesseis anos, nascia um namoro e, anos depois, um casamento.Atualmente, André Gusson (34) e Letícia Gusson (31) passam as noites das terças e sextas movendo as verduras, frutas e folhas do caminhão para a barraca.
Ambos são filhos de agricultores de Biriricas, distrito de Domingos Martins (ES), há cerca de setenta quilômetros de Vitória (ES). Ainda na adolescência, os dois acompanhavam os pais da produção agrícola às feiras da capital do Espírito Santo. Logo, André notou algo mais na moça que ficava há duas ou três barracas após a dele. “No início eu percebi que ele me olhava, eu também olhava para ele. Depois a gente começou a conversar. E aí eu levava um bolo para ele, ele me trazia umas frutas, e assim a gente começou a namorar”, descreve Letícia.
A rotina do casal sempre foi noturna. Enquanto tira os produtos das caixas, André conta que já está acostumado. Para eles, esse trabalho na madruga é o pilar de subsistência de uma família inteira. A barraca deles comercializa os produtos da Associação de Produtores de Biriricas, uma espécie de cooperativa que reúne dez trabalhadores e produtores rurais, todos parentes.
Reciclagem e frete na madrugada
Já Jorginho — “é só Jorginho mesmo, não uso o sobrenome”, disse para a reportagem — continua tendo disposição mesmo no auge dos seus 51 anos de idade. Ele deixa a sua casa, em Andorinhas, e sai pelas ruas de Vitória, catando latinhas e empurrando o seu carro de reciclagem, fabricado em 1995. Jorginho passa a madrugada trabalhando para levar sustento à família.
Além do ofício de catador, ele faz fretes para comerciantes de diversos bairros, inclusive na feira de Jardim da Penha. Por volta das 3h da madrugada, Jorginho já está ativo, ajudando a montar as estruturas das barracas e transportando produtos de um lado para o outro.
O grande problema fica por conta do cansaço. De acordo com o catador, conseguir tempo para dormir é um luxo. “Em dia de feira eu durmo só umas duas horas por dia. Preciso acordar cedo por uma questão de necessidade”.
Mesmo assim, Jorginho conta que o trabalho rende um dinheiro importante para o sustento da sua família. No trabalho de frete nas feiras de Maruípe, Jardim Camburi e Jardim da Penha consegue R$80 por dia. Já catando e vendendo latinhas, recebe pouco mais de mil reais por mês.
“QUANDO CHEGO EM CASA, DESCANSO UM POUCO E DEPOIS SAIO PRA CATAR LATINHA. EU GOSTO DE QUALQUER TRABALHO. TUDO QUE TIVER DINHEIRO, EU TÔ FAZENDO”. – JORGINHO
Hora de lazer
Nem a insegurança ou a chuva fazem com que os jovens Igor Calmon, 25, e Rennan Ataídes, 26, deixem de frequentar a Praia de Camburi durante a madrugada. Moradores da capital há cinco anos, os amigos vão até o local umas três vezes por semana, onde ficam horas conversando, lendo e escutando música.
Eles se conheceram em Santa Teresa, no interior da Espírito Santo, ainda na adolescência. Estudaram juntos por muitos anos, até que foram para a capital começar uma graduação na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Rennan é licenciado em Geografia e Igor está finalizando o curso de Design.
Além de amigos, os dois também dividem um apartamento, a poucos minutos da praia. Assim que começaram a procurar por um espaço de lazer perto de casa, essa proximidade contribuiu para que escolhessem a orla. De três meses para cá, portanto, trocam algumas horas de sono pelo barulho do mar e o contato com a areia.
“Só a praia ajuda a relaxar de um dia tão estressante. [Ela] é um pedaço de natureza, igual como tínhamos em Santa Teresa. Isso faz com que a gente se sinta em casa. Em Vitória, ficamos restritos ao concreto, aos prédios”, afirma Igor, que passa o dia inteiro em frente ao computador por investir na bolsa de valores.
Rapper nas horas vagas, Rennan também afirma que a praia é uma fonte de ideias de novos beats, ritmos e melodias. Por ter que conciliar a música com a carreira de professor, a madrugada virou um momento para ele fazer suas criações, seja compondo ou estudando. “Quando sobra algum tempo no meu dia, venho para a praia. Até porque trabalho com a criatividade, a música vive de novas ideias, e esse ambiente ajuda muito”, conta.
Outra razão que influenciam os dois a irem até a praia é o clima. “Uma coisa muito diferente entre Vitória e Santa Teresa é o clima. Lá, tudo é bem mais gelado. Já aqui, tem essa brisa do litoral, que é mais gostosa. Acho que é uma das únicas coisas que não sentimos falta de lá”, lembrou Rennan.
Mudança de vida
De consultor telefônico a dono do próprio food truck, o empresário Wagner de Oliveira Costa, 36, quis mudar de vida há menos de dois anos. Pai de dois filhos, ele acreditava que estava perdendo o crescimento das crianças de 4 e 1 ano, por ter que trabalhar mais de 50h semanais no seu último emprego.
“Praticamente não via meus filhos, saía de manhã e só voltava à noite, quando eles estavam dormindo. Perdi os primeiros passos da minha filha mais velha. Trabalhava de segunda-feira a sábado, às vezes domingo, para ganhar um dinheiro a mais”, relembra, explicando os motivos que o levaram a mudar de rumo.
Com o conselho de um amigo, decidiu abrir uma loja de pastéis e caldo de cana, que hoje fica na Praça do Epa, em Jardim da Penha. Wagner trabalha sozinho, todos os dias. Chega sempre às 12h e fica no trailer até quando a clientela vai embora.
“Agora, eu quem faço meu próprio horário. Se algum dos meus filhos ficar doente, por exemplo, posso fechar o food truck e ficar em casa, dar um cheiro nele”, conta.
E, assim como na própria família, ele também conseguiu manter uma relação mais íntima com os comerciantes da praça, especialmente quando um precisa do outro para resolver problemas. “Se o carro de um quebra, a gente vai lá e socorre. Quando um tá com o carro na oficina, vamos lá buscar o food truck pra eles. Esses dias mesmo consertei a luz do Dodô do Churrasquinho. Dá umas brigas, como qualquer família, mas a gente logo se realinha e tudo volta a ficar bem”.
Por causa da pandemia, Wagner revela que suas vendas caíram de 100 pastéis por dia para apenas 5, no início de maio, quando pôde voltar a vender. Hoje, ele ainda só consegue vender 30, embora mantenha a positividade e acredite que “as coisas já estão melhorando”.
“Tenho fé de que o nosso comércio local vai voltar com muita força no ano que vem, para ser aquele lugar de encontro de famílias e amigos. Por enquanto, o que podemos fazer é trabalhar bastante para recuperar o tempo perdido”, acredita.