“Eu esbarrei no paradoxo da falta de representatividade”, diz advogada negra e mulher trans que criou consultoria em Diversidade e Inclusão

Mulher trans e negra, Gabriela Augusto decidiu ir além das barreiras do preconceito. Montando a própria empresa, decidiu orientar empresas a pensarem em diversidade e inclusão (Foto: Reprodução)

Ser reconhecido e bem remunerado no mercado de trabalho não é fácil. Mas, sem dúvidas, é um desafio mais difícil para negros, pessoas com deficiência e pessoas LGBTQIA+. Com isso em mente, a advogada negra e mulher trans Gabriela Augusto, 27, reconheceu que poderia partir de suas dores e fazer, de uma vez por todas, com que a diversidade e a inclusão ganhassem espaço em grandes empresas. Com esse intuito, ela fundou, em 2018, a Transcendemos.

Tudo começou durante a faculdade de Direito. Nessa época, Gabriela Augusto passou pela transição de gênero e começou a olhar para as empresas em que gostaria de trabalhar. E, tão logo, veio uma constatação: ela não via pessoas parecidas como ela nesses lugares. Tanto que um questionamento comum era se, enquanto mulher trans e negra, conseguiria trabalhar no futuro em uma grande empresa ou ter uma posição de destaque no mercado de trabalho.

“Eu acreditei que não seria possível. Simplesmente, pelo fato de eu ser quem eu sou. Eu esbarrei no paradoxo da falta de representatividade. Se não vemos ninguém parecido com a gente, somos desestimulados a tentar. E, se isso acontece, esse ciclo da exclusão se perpetua”, explicou a especialista em diversidade e inclusão em uma entrevista virtual coletiva concedida aos focas do 24º Curso de Residência de Jornalismo da Rede Gazeta, na sexta-feira (15).

Para não ficar inerte diante da situação, Gabriela criou um livro de bolso, o Manual Empresa de Respeito. Nele, colocou informações referentes à igualdade de gênero, às pessoas com deficiência e ao combate à LGBTfobia. Decidiu imprimir vários exemplares na impressora de casa e distribuir para empresas de onde morava na época, lá na periferia de São Paulo.

No início, muitos empresários nem ligavam para esse manual. Mas, a partir do pedido direto de Gabriela Augusto para que essas chefias conscientizassem seus colaboradores sobre a importância do respeito e da não-discriminação, a situação mudou. Tanto que começou a ser demandada para treinamentos, até fundar a Transcendemos.

“Eu comecei esse trabalho como uma dor pessoal. De não me ver em uma grande empresa por causa do preconceito, pela falta de inclusão e também por sentir a dor dos colegas e das colegas que estavam no meu entorno”, ressaltou a advogada.

Importância da inclusão

Para Gabriela, a inclusão no dia-a-dia de uma empresa contribui com um mundo mais justo e igualitário. Mas não é só isso. A empresária enxerga que trazer para perto temas inclusivos é uma estratégia relevante para o negócio. Afinal, há impactos em muitos sentidos, desde o nível de inovação da organização, até a melhoria do trabalho em equipe, passando pelo recebimento de mais investimentos de outras empresas .

“Se a pessoa é livre para ser quem ela quiser em uma empresa, ela irá trabalhar com um sorriso no rosto. Com isso, é natural que ela se dedique mais em suas tarefas, tanto em produtividade, como contribuir com ideias e sugestões. É uma chama da criatividade”, complementou Gabriela.

As empresas mais preocupadas com as temáticas inclusivas, segundo a advogada, são as pertencentes ao setor de tecnologia, já que é uma área muito desigual, em que a maior força de trabalho é, ainda, masculina e cisgênero. Apesar disso, todos os setores precisam estar atentos a esse assunto, até os pequenos empreendedores. “Uma empresa que não está olhando para a diversidade e inclusão tende a ficar para trás. Estão fadadas a perder espaço”, afirmou a fundadora da Transcendemos.

O trabalho da Transcendemos

A Transcendemos é a empresa de consultoria em Diversidade e Inclusão da Gabriela Augusto (Foto: Reprodução)

A Transcendemos possui três frentes de atuação. A primeira é voltada exclusivamente para empresas. Gabriela e sua equipe ajudam organizações a se tornarem mais inclusivas, traçando metas, promovendo mudanças de processo seletivo ou de política interna.

A outra é quanto à formação de talentos, no apoio profissional tanto para pessoas trans, como para os negros e aqueles que possuem algum tipo de deficiência.

Já a terceira frente é a capacitação de profissionais interessados em se tornarem especialistas na temática de diversidade e inclusão ou mesmo pessoas que desejam garantir um conhecimento mais aprofundado sobre esses tópicos.

Ponto a ponto

Diversidade – Entendimento que a sociedade é formada de pluralismo. Ou seja, os indivíduos se diferenciam entre si em vários sentidos, desde origem geográfica, questões culturais e habilidades físicas até quanto a raça, gênero, orientação sexual, cultura e religião.

Inclusão – Está ligada a uma mudança de cultura, em que é necessário colocar em prática um conjunto de ações para valorizar, incluir e respeitar as diferenças dos indivíduos.

Cisgênero – Condição da pessoa cuja identidade de gênero corresponde ao gênero que lhe foi atribuído no nascimento.

Transgênero – Condição da pessoa que não se identifica com o gênero imposto no nascimento.

“Não consigo liberar o meu coração para amar novamente”: a história de uma mulher vítima de violência doméstica

Violência doméstica
Violência doméstica
Milhares de mulheres são vítimas de violência doméstica todos os dias no Brasil (Foto: Freepik)

No começo do namoro, eram apenas descontroles verbais de ciúmes. Encarados por Bárbara* como zelo e proteção. Afinal, na época, pouco se falava sobre os sinais de um relacionamento abusivo. Mas, com o passar do tempo, a realidade de agressão se impôs totalmente. Paulo*, marido da autônoma, após o vício em drogas, passou a agir com raiva, ódio e obsessão quase todos os dias com a companheira. O amor deu espaço para o medo. Para a angústia. Para a vergonha. E mais do que isso: para a luta pela sobrevivência.

Bárbara e Paulo se conheceram no final de 2012. A relação do casal deixou de ser tranquila e saudável quando a dona de uma loja de artigos personalizados na Serra ficou grávida de João*, hoje com 7 anos. O parceiro não queria ser pai, porque já tinha um filho, fruto de um outro relacionamento. Logo, insistia constantemente para a companheira tirar o bebê de seu ventre.

Bárbara não cedeu. Não queria abortar. Não era uma hipótese que passava em sua cabeça. Essa decisão acarretou em xingamentos e uma grande pressão psicológica por parte de Paulo durante a sua gravidez. Mais tarde, após o nascimento de João, o corpo da jovem de apenas 27 anos também começou a ser afetado. Recebia chutes, murros, pontapés e até sofria agressões com objetos para intensificar as dores, como cinto e cabo de vassoura.

Paulo tinha o objetivo de machucar e deixar a companheira em pânico, principalmente quando estava sob o efeito de drogas ou em abstinência. Por isso, Bárbara sabia o que aconteceria toda a noite após voltar do trabalho, caso algo não agradasse o parceiro. “Qualquer coisa irritava, como, por exemplo, se a casa ficasse desarrumada ou a comida não estivesse pronta quando ele chegasse em casa”, relembra, com um semblante de tristeza.

Os surtos de Paulo eram frequentes. As agressões atingiam também a própria casa da família. O descontrole fazia com que móveis fossem quebrados com força e nem tivessem mais utilidade. Guarda-roupa, televisão, armários e, especificamente, um fogão, que chateou a autônoma por um motivo especial.

“Certa vez, eu tinha sido demitida de um emprego e estava precisando muito de um fogão em casa. Comprei [com o dinheiro da rescisão] e, depois de uma semana, a gente discutiu. Ele, nervoso, deu um chute na lateral do fogão”, revela Bárbara, sobre o fatídico episódio entre tantos que escapam da memória.

Idas e vindas

Bárbara viveu o relacionamento abusivo com Paulo por sete anos, desde a gravidez de 2013 até março de 2020. Nesse tempo, a cada pico de agressão, a jovem se afastava completamente do marido. “Eu me separava quando não aguentava mais e me sentia como um lixo. Um nada. Quando reconhecia que o homem que amava e escolhi para ser o pai do meu filho estava fazendo tudo aquilo comigo”, conta.

Essas separações duravam de três a quatro meses, no máximo. Depois, a autônoma fornecia novas chances. Ela voltava com o marido, carregando a esperança de que ele tinha mudado e se transformado em um homem diferente. Afinal, Paulo chegava a falar que estava indo com regularidade na igreja em busca de uma cura espiritual e também disposto a parar de ser usuário de drogas. Promessas que sempre se mostraram falsas.

“Eu voltava porque tinha esperança de ter uma família. De criar o meu filho junto do pai. E, quando voltávamos, ele parecia um ótimo marido. Mas depois afundava o pé nas drogas e começava tudo de novo. Xingava, batia e me humilhava das piores formas. É um ciclo vicioso. Até chegar um momento em que eu tive medo de ser mais uma vítima da estatística [de feminicídio] e me separei”, explica.

As últimas agressões

O medo de Bárbara se intensificou devido às últimas três agressões de Paulo, que vieram acompanhadas de ameaças de morte.

A primeira delas aconteceu em março do ano passado. Após uma série de espancamentos, a autônoma chamou a polícia e Paulo foi preso em flagrante, enquadrado na Lei Maria da Penha, que pune atos de violência contra a mulher. O agressor ficou preso apenas por um mês. “Eu não sei definir muito bem a sensação. Mas foi bem ruim. Parecia que tudo estava desmoronando. Eu tinha medo dele sair e me matar”.

Após a saída de Paulo da prisão, Bárbara, que já morava com o filho na casa da mãe, tentou uma aproximação com o ex-marido. Não com o objetivo de viverem uma relação novamente. Mas, sim, para João ter o pai por perto. Objetivo esse que falhou novamente depois de poucos meses. Isso porque, em agosto, o agressor teve mais uma atitude destrutiva, quando chegou na loja da autônoma e destruiu os seus maquinários de produtos personalizados. “Fiz a denúncia novamente e não deu em nada”, complementa Bárbara, com a indignação permeando o seu tom de voz.

Em seguida, Bárbara viveu períodos mais tranquilos, até ser interrompida pela última agressão. Março deste ano. Paulo levou o João para loja e perguntou à ex-esposa se poderia beber água. Como estava atendendo clientes e não queria causar uma briga, a jovem autorizou. Chegando a hora de fechar a loja, o agressor tentou enforcar a vítima por trás e tapou a sua boca.

Em meio ao desespero, Bárbara teve forças, conseguiu se desvincular das garras do agressor e voltou com o filho de bicicleta para a sua casa. Mas a noite não acabava ali. De madrugada, Paulo roubou a bicicleta no quintal. A autônoma percebeu e, com a mãe e o irmão, foi até a casa do ex-companheiro.

“Quando eu fui buscar a bicicleta, ele quebrou um vidro de cerveja e foi em direção a minha mãe. Todo mundo começou a brigar. Na hora que estávamos indo embora e eu estava descendo o morro, ele me deu várias pauladas nas costas e na perna. Tive que ir direto para o hospital. Ele foi preso e solto depois de três dias, já que alegaram que ele estava sob efeito de drogas”, resume.

Apoio de um lado, julgamento de outro

Durante os três primeiros anos do relacionamento, Bárbara viveu toda tortura física e psicológica sozinha. No seu mundo. Inclusive, quase ninguém percebia o seu comportamento estranho nem a sua tristeza. Ela despistava por ter vergonha. Além disso, Paulo, muitas vezes, a agrediu sem deixar marcas e cicatrizes expostas. Segundo ela, o companheiro fazia isso intencionalmente, para que ninguém comprovasse visualmente a realidade. A violência doméstica.

Ou quase ninguém, porque a avó materna, mesmo sem Bárbara falar, sentiu que a neta estava passando por turbulências. “A minha avó teve essa percepção porque também sofreu agressões do meu avô. Eu sempre fazia rodeios ao ser perguntada sobre o motivo de estar triste. Mas, no fundo, acho que o coração de vó já sabia que tinha algo de errado”, acredita a autônoma que, hoje, desabafa com a avó sobre o assunto que as conecta.

O restante da família de Bárbara só soube de tudo que estava acontecendo quando o filho começou a falar e a ter comportamentos violentos. O pequeno João chutava as pessoas e repetia aos quatro ventos: “O meu pai faz assim com a minha mãe”. Assim, não havia mais a possibilidade de esconder. Era um fato a ser compartilhado. E houve amor, ponto de escuta e de força para a jovem a todo momento. Uma preocupação que permeia os parentes e dura até hoje pelo seu bem-estar. Pela sua vida.

Enquanto o acolhimento se fez presente em contato com a família, no que se refere aos amigos foi um pouco diferente. Veio o julgamento. Algumas pessoas ligadas ao casal ficaram contra Bárbara e a favor do agressor. Diziam e ainda dizem que a autônoma tinha que ter controlado o marido desde o início. Uma culpabilização da vítima. Uma inversão da história.

“A empatia não faz parte das pessoas. Se elas se colocassem no lugar das outras, veriam como é difícil passar por essa situação de violência. O amor está esfriando. Mas, por mais que a gente fique triste, sabemos que é um livramento. Quem quer um amigo assim do lado?”, questiona Bárbara.

Desdobramentos

Atualmente, o agressor de Bárbara não está preso. Inclusive, Paulo mora no mesmo bairro que a autônoma. Apesar disso, o ex-marido não pode chegar próximo de 100 metros dela, já que a jovem tem uma medida protetiva que impõe essa distância. Todo mês, uma viatura da polícia vai ao encontro da vítima para fazer uma visita tranquilizadora, que procura saber se a medida está sendo cumprida.

A regra – até então – está sendo respeitada. E Bárbara quer isso. Enfim, chegou em um estágio que não pensa em uma reaproximação. Deseja apenas que Paulo cumpra as suas obrigações de pai e arque com a pensão, como já tem andamento de processo na justiça. “A melhor alternativa é vivermos longe dele. Cheguei a essa conclusão por tudo que já vivemos. É uma pessoa tóxica. Não é um espelho para o meu filho”, afirma, carregando a certeza que em outrora não havia.

Em relação ao filho, a autônoma teve que pausar a assistência psicológica destinada ao unigênito devido às condições financeiras. Só que os ensinamentos dentro de casa continuam. “Meu filho sabe que homem que bate em mulher é covarde. Conversamos muito sobre isso. E sei que ele sente falta do pai. Mas, infelizmente, por tudo que já vivemos, ele também sente medo de ficar com o Paulo. O pai criou um bloqueio entre os dois”, assegura.

Recomeço

Paulo não a ameaça e não a persegue há seis meses, mas a insegurança ainda está presente no dia-a-dia de Bárbara. Apesar de ter pesadelos dentro de casa, o medo cria potência do lado de fora. Na rua, buscando o seu filho na escola, indo pro trabalho ou mesmo fazendo exercícios físicos. Prova disso é que a autônoma chegou a colocar grades em sua loja para trabalhar de forma tranquila.

Além do medo, para conseguir superar por completo e ter um novo começo, Bárbara acredita que precisa se desprender de amarras emocionais. E faz isso com a ajuda da fé em Deus, da leitura em livros de autoajuda e da terapia por telefone com profissionais da Prefeitura da Serra. A jovem sabe que é necessário internalizar principalmente um fato: a culpa nunca foi dela. “Até hoje me pergunto onde errei. Será que tudo isso que aconteceu foi culpa minha e eu fui a errada? Se não fui uma mulher sábia e, realmente, ele tinha razão do que ele fez. Sempre fica esse questionamento na mente”, se pergunta.

É um processo. E Bárbara reconhece que o tempo é o melhor remédio para ela se ver mais forte e também capaz de sobreviver sem um amor tóxico. A autônoma está em uma cura, que não precisa ser rápida e tão pouco apressada. Precisa ser no tempo necessário. No tempo suficiente para cessar as dores e apagar as cicatrizes o máximo que conseguir. Nesse processo, ela já conta a própria história como testemunho para ajudar outras mulheres. Para que elas tenham coragem de seguir em frente e se desprendam de relações destrutivas e amargas.

“Ainda não consigo liberar o meu coração para amar novamente. Tenho medo de me decepcionar. Mas eu pretendo um dia superar tudo que eu passei. Pretendo ter a minha estabilidade financeira. A minha própria casa. E um dia encontrar um novo amor, que cuide de mim”, espera Bárbara do futuro.

Bárbara não é a única

Bárbara é uma dentre milhares de mulheres que sofrem com a violência doméstica no Brasil todos os dias. 

No país, em 2020, segundo o levantamento do Datafolha encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram  violência física, psicológica ou sexual. Isso representa uma a cada quatro mulheres. De acordo com os dados, a maioria dessas  mulheres são jovens com idade entre 16 a 24 anos (35,2%), pretas (28,3%) e divorciadas (35%). 

O Espírito Santo, infelizmente, também possui uma situação preocupante. No Estado, de janeiro a junho de 2021, já foram registrados 9 mil casos de violência contra a mulher. Segundo a Secretaria de Estado da Segurança Pública (Sesp), é como se todo dia 51 mulheres relatassem à polícia que foram vítimas de agressão de seus companheiros. 

Em relação ao feminicídio, de janeiro a julho deste ano, foram registrados 21 casos no território capixaba, de acordo também com dados da Sesp. Durante todo o ano de 2020, foram 26. Ou seja, até agora, os dados de 2021 representam 80,7% da totalidade do ano passado. 

Como denunciar?

Na editoria “Todas Elas” de A Gazeta, você encontra as principais formas de denunciar a violência contra a mulher no Espírito Santo. São elas: 

– A vítima pode procurar ajuda nas delegacias especializadas de atendimento à mulher. A polícia também pode ser acionada pelo Ciodes, no número 190, e, no Disque Denúncia, pelo 181;

– A Defensoria Pública é outra opção nos municípios que tenham o órgão implantado. A instituição pode ajudar com a elaboração de requerimentos de medidas protetivas de urgência, com o requerimento do divórcio, guarda dos filhos menores e encaminhamentos para atendimento psicossocial. É possível pedir assistência pela internet;

– O Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) são de responsabilidade da prefeitura de cada município. Eles oferecem atendimento psicossocial gratuitamente.

* Como forma de proporcionar segurança à vítima, nessa matéria, foram utilizados nomes fictícios.

“Eu me vejo tornando o assunto mais leve”, diz Amarildo, chargista que atua há 35 anos na Rede Gazeta

Amarildo se dedica há 35 anos a produção de charges em A Gazeta (Foto: A Gazeta / Bernardo Coutinho)

Ouvindo um barulho generalizado de máquinas de escrever e vendo uma fumaça pairando na cabeça de todo mundo da redação. Foi nesse cenário que o chargista e ilustrador Amarildo começou a atuar na Rede Gazeta na década de 80. Com mais de 35 anos de dedicação à arte visual, o profissional, hoje, tenta equilibrar criticidade e leveza em suas charges, principalmente em tempos tão polarizados politicamente no Brasil. Um desafio e tanto.

Para Amarildo, não restam dúvidas. O desenho é a primeira linguagem do ser humano. Afinal, as crianças fazem rascunhos e rabiscos com a intenção de registrar o cotidiano e de se comunicar. Segundo ele, as charges utilizam desse tipo de arte para criar conexão com os acontecimentos políticos, sociais e econômicos que acontecem todos os dias no país e também no mundo. Ou seja, fazem parte essencialmente de um jornalismo visual.

“Charge significa ‘carga’. É feita pra ser uma espécie de ‘porrada’. Mas podemos dar essa porrada com luvas e sem ser com muita força. Então, eu me vejo tornando o assunto mais leve. O chargista não deve aumentar a intensidade do fato”, acrescentou Amarildo, em um bate-papo virtual com os focas do 24º Curso de Residência em Jornalismo da Rede Gazeta na quarta-feira (27).

Amarildo também contou que não sai ileso de opiniões positivas e negativas. Muitos se sentem impotentes, indignados e, realmente, veem as charges como a própria voz sendo representada naquela crítica. Por outro lado, alguns não aceitam e reprimem o cartunista com xingamentos. Inclusive, antigamente, futebol era o tema mais polêmico e que rendiam cartas de reprovação. Agora, com a polarização, é a política.

“As pessoas descarregam tudo sem filtros. Não é agradável você acordar pela manhã e ver alguém te xingando com o que tem de pior do vocabulário. Mas eu procuro amenizar. Eu não respondo os ataques. Nenhum. Ao não responder os ataques, a agressão volta para quem agrediu. Os elogios, eu agradeço”, afirmou o chargista.

Evolução tecnológica

A evolução tecnológica mudou o trabalho do chargista. Durante décadas, não era possível, por exemplo, ter esse tipo de retorno instantâneo do público, já que as charges circulavam exclusivamente no jornal impresso, logo, aqueles que queriam mandar um recado para Amarildo tinham que enviar cartas ou telegramas.

“Agora, você acaba de publicar um trabalho e imediatamente, recebe as vaias e os aplausos. É tempo real. Uma espécie de palco ao vivo”, revelou Amarildo, que ainda citou que tenta fazer charges animadas e em formato de reels no Instagram para fisgar mais pessoas para o conteúdo.

Outra mudança tem relação, claro, com os materiais utilizados na produção de uma charge. No início, o chargista precisava de papel, grafite e caneta nanquim para fazer as charges em preto e branco. Quando o jornal impresso evoluiu para o colorido, Amarildo passou a utilizar tinta. Atualmente, nada disso. O processo é praticamente todo digital. Com uma caneta touch, um tablet e um computador, os desenhos ganham forma. “Isso dá mais mobilidade ao meu trabalho. De qualquer lugar que eu estiver, posso mandar o meu trabalho”, disse.

Registro do bate-papo de Amarildo com os residentes (Foto: Reprodução)

Processo de criação

Apesar da tecnologia ter provocado mudanças em sua rotina, Amarildo busca por ideias de forma mais manual e clássica.

Todos os dias, acorda e vai fazer uma caminhada pelo seu bairro. No percurso, leva dois celulares. Um mais simples, que capta sinal de rádio pela antena. E outro smartphone que apresenta mais recursos. O primeiro é essencial para o chargista ouvir as principais rádios de notícias. Já o segundo serve para gravar as ideias pelo caminho.

Quando chega em casa, continua o processo. Amarildo fica acompanhando canais de notícias, como a GloboNews, e ao mesmo tempo, com mais de 20 abas de sites abertas em seu computador. “Primeiro, você precisa receber a informação e depois fazer a charge. E o dia inteiro essa oficina de informação é processada”, afirmou.

Crendo na ideia de que um “bom desenho não salva uma ideia ruim” e sim uma “ideia boa salva um desenho ruim”, Amarildo valoriza esse início do processo de criação, mas também o final dele. Afinal, quando chega o momento de analisar o texto que acompanhará os desenhos da charge, o chargista redobra a atenção.

“Temos que pensar como todas as camadas sociais irão entender aquela charge. É buscar uma linguagem universal. […] Tento também ser relevante e deixar com que a pessoa e o fato centralizados estejam irretocáveis. Você não pode criar um fato porque você não gosta de uma determinada pessoa. Isso tem que estar o tempo todo na cabeça”, concluiu o chargista.

Confira uma galeria com charges do Amarildo!

Conhecendo mais Amarildo

Amarildo cresceu com a ideia de fazer Engenharia Eletrônica. Apesar disso, durante a década de 80, não havia ainda esse curso no Espírito Santo. Então, resolveu se deleitar no mundo da Física. Mas o percurso pela área de exatas não durou muito.

Como gostava muito de desenhar, inclusive durante as aulas, um professor orientou o jovem na época a conhecer o curso de Artes Plásticas. Depois de adiar esse processo, Amarildo conheceu essa área da Ufes, se encantou e, após um período da faculdade, largou de vez os cálculos da Física.

Após garantir o bacharel em Artes, Amarildo realizou trabalhos para agências e empresas como ilustrador, até que surgiu a oportunidade de ingressar na Rede Gazeta, onde está desde 1986. São 35 anos atuando como chargista e editor de ilustração na mesma empresa. Por décadas, trabalhou para o jornal impresso. Nos últimos dois anos, as suas charges diárias vêm sendo publicadas exclusivamente no portal A Gazeta.