Na última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, cujos resultados foram apresentados em setembro, os brasileiros indicam a falta de tempo como um dos impeditivos para leitura. Introduzir a leitura no cotidiano parece tarefa difícil, mas algumas técnicas podem aperfeiçoar a satisfação em estar acompanhado por um livro.
Segundo a doutora em Educação e Mestre em Linguagem, Andrea Grijó, o segredo está em reconhecer a importância de ler como parte da experiência humana e valorizá-la.
O valor da leitura, defende, está presente em todas as sociedades que se organizam culturalmente pela escrita, pois dominar o idioma torna-se essencial para o exercício pleno da existência. “O poder da leitura ativa está em incentivar a participação da vida em sociedade e o acesso ao patrimônio cultural, levando à emancipação dos sujeitos”, complementa.
“Antes de tudo, não devemos falar em hábito de leitura. Hábito é algo com que você se acostuma e nem sabe mais porque faz. Não é assim que se formam leitores. Enquanto tratarmos a leitura como hábito, teremos dificuldade de compreender que podemos nos tornar leitores em qualquer etapa da vida.”, explica Grijó.
O mestre em literatura Thalles Zaban acrescenta que o imediatismo é inimigo do prazer de ler. “Hoje existe uma cultura, que nasce nas escolas, de que os livros devem trazer um resultado imediato. Isso não existe na esfera do conhecimento, não se quantifica a inteligência em números de retorno. Ler é uma competência que deve ser incentivada pelas leituras de fruição, que são aquelas fáceis, que divertem e aproximam as pessoas do hábito. Além disso, também é importante inserir leituras complexas, aquelas que abrem a mente para questões existenciais e sociais, e que têm fortes referências literárias. Isso faz com que a competência evolua e o prazer aflore”, reforça.
Fazendo coro à essa fala, Renata Costa, leitora de longa data, a historiadora e mestre em Ciências Sociais aprofundou-se em leituras críticas na pandemia. Ela conta que esse momento foi fundamental para adentrar num campo da escrita que questiona a objetividade e usa da extrapolação para pensar o presente.
“A pandemia adensou meu interesse pela ficção científica e pelo afrofuturismo, estilos que aguçam a sensibilidade para mundos inventados com novos seres, narrativas e pessoas. [O livro] 2024, de Octavia Butller, por exemplo, pode parecer muito distante de nós, mas aborda temas muito caros ao nosso momento atual, como uso da água e o desemprego”, diz.
Reconectar-se a leituras passadas foi a artimanha encontrada pela jornalista e professora de linguagem Rayza Fontes, para evoluir enquanto leitora. Ela conta que leu, no mínimo, 80 livros nesse período.
“A pandemia me tirou do piloto automático da correria do dia a dia e me mostrou uma oportunidade de retomar antigos hábitos. Eu voltei a ser a leitora voraz, ansiosa para a próxima descoberta literária, que podia ser quando mais jovem e tinha mais tempo. Na pandemia, pude fazer releituras transformadoras, ler de novo histórias clássicas, que ainda não tinham terminado de dizer tudo que poderiam. É muito interessante revisitá-las e poder descobrir coisas novas que passaram despercebidas na primeira vez”, completa.
“Hoje posso dizer que não vivo pra ler, leio pra viver. Os livros são minha companhia nos melhores e piores dias”.
No momento estou lendo…
Thalles: Dom Quixote de la Mancha, do escritor Miguel de Cervantes, 1605
Nesse clássico da literatura o leitor conhece a história de Dom Quixote, um pequeno fidalgo castelhano que perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis preferidos. O romance narra as suas aventuras em companhia de Sancho Pança, seu fiel amigo e companheiro, que tem uma visão mais realista. “Este é um exemplo de livro clássico que gera novas constatações a cada novo encontro”, conta o professor.
Renata: ‘Um Defeito de Cor’, da escritora Ana Maria Gonçalves, 2017, Editora Record
A história, que será adaptada para a televisão, conta a história de Kehinde, trazida ao Brasil de Daomé, na Costa do Marfim. O leitor acompanha a trajetória da personagem em uma narrativa que alia história e ficção. O diferencial, segundo Renata, está nas imagens líricas que a autora cria com cadeias associativas de palavras, formando composições belíssimas, ainda que para descrever atos de mais puro terror.
Rayza: ‘A vida secreta dos escritores’, do escritor Guillaume Musso, 2020, Editora L&PM
Numa história de ficção com crime, suspense e mistério, o escritor bestseller francês Guillaume Musso conta uma história cheia de reviravoltas envolvendo escritores e suas obras.
Eu indico…
Rayza: “Indico ‘A Menina da Montanha’, a história real de uma americana que, privada pelo pai de conviver em sociedade, só pisou numa sala de aula pela primeira vez aos 17 anos. O livro a acompanha até a conquista do doutorado em Cambridge. É um ótimo exemplar para leitores iniciantes, pois tem uma narrativa gostosa e uma história eletrizante. Já para leitores mais avançados nele
Thalles: “Só um livro? Eu indicaria vários livros, todos os livros do mundo (risos)!” Depois de muito pensar, Thalles delimitou um autor para indicar à reportagem. “a literatura dos países lusófonos – que tem no português sua língua nativa, como Moçambique e Angola – tem muito a acrescentar. Podemos ler suas histórias em um idioma compartilhado, o que cria uma identificação e um senso de pertencimento. Indico Mia Couto, autor moçambicano, que possui um lirismo influenciado pela literatura brasileira, porém com uma abordagem única.”
Renata: “Indico livros que possam aguçar o interesse sobre a realidade ou a história. Para nos descolonizarmos também precisamos recriar o mundo, repensá-lo. Ficção e não-ficção, para mim, andam lado a lado, por isso indico o livro que estou lendo, ‘Um defeito de Cor’ de Ana Maria Gonçalves e o exemplar ‘Negros do Espírito Santo – Coleção do Arquivo Público Estadual’. Não me esqueço do deste no Palácio Anchieta: todos os exemplares esgotaram! Com boa qualidade e repleto de fotos ao lado dos textos, temos ali um exemplo de que há demanda no mercado por livros documentais.”
Além de leitora fiel, escritora sensível
Historiadora por formação e coração, Renata Costa conta que a leitura está no sangue. Sua mãe, Marilene, devorava livros e ela mesma cresceu rodeada desses amigos. “Ler é hábito herdado de minha mãe. Na minha história a leitura é basilar”.
Em meio à pandemia, Renata encontrou refúgio criativo num livro de crônicas que publicou, junto a outras escritoras, com organização de Thiara Cruz, pela Editora Pedregulho. O livro se chama ‘Quarentena Crônica’ e perpassa por variadas nuances deste momento tão singular. O livro reúne obras de 10 autoras capixabas e tem distribuição gratuita da versão digital.
Retomada no interesse por livros foi percebida pela economia em setembro deste ano
Observados os dados do 10º Painel de Varejo de Livros no Brasil, pesquisa feita pelo instituto Nielsen em parceria com o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), é possível perceber uma aumento no interesse do brasileiro pela literatura.
O comércio varejista de literatura atingiu o pico anual em setembro, com alta de 25,63% no volume de exemplares vendidos. Neste mês de outubro, houve uma elevação de 4,73% no faturamento e de 7,31% no volume de livros em comparação ao mesmo período de 2019.
Por outro lado, infelizmente, a pandemia ainda se faz presente no setor, que permanece com queda no valor acumulado em faturamento e volume de 5,26% e 4,68%, respectivamente, em relação ao ano passado.